Conheceu-o quando foi viver para Lisboa.
O filho entrava no 2º ano e era a primeira vez que ficava sozinho em casa. Para poder pagar a casa, não havia hipótese de arranjar ninguém para ficar com ele. Começava a trabalhar cedo, às sete da manhã, e as aulas começavam às nove.
No primeiro ano, o refeitório da escola não funcionou. O filho almoçava em casa do Sr.F. com a neta dele. A mulher ainda trabalhava e a filha e o genro também. Logo no segundo ou no terceiro dia que se mudou para aquela casa, ele se ofereceu para olhar pelo “neto” emprestado, durante o almoço. E fê-lo, durante um ano lectivo inteiro.
Depois, os anos passaram. Deixou de ser preciso dar almoço ao seu menino, os dois netos, a verdadeira e o emprestado, separaram-se na escola, e deixaram de se ver tanto.
A doença, as doenças, também ajudaram ao afastamento. Primeiro o coração, depois os rins, depois um atropelamento e o Sr. F. passou a dividir a sua vida entre o Hospital e a sua casa. Quando estava em casa, passava muito tempo na janela. Por detrás dos vidros, a olhar para as árvores do Instituto. Parecia que não a reconhecia mais. A ela parecia-lhe que o olhar dele não falava. mas nunca teve a certeza.
Nos últimos tempos, as doenças, entretanto, diagnosticadas (ela não fazia ideia que era possível ter Parkinson e Alzheimer, ao mesmo tempo, mas parece que é) afastaram o Sr. F. definitivamente da janela. Não que não ande. A mulher diz que faz quilómetros diariamente, duma ponta a outra de todas as assoalhadas.
Percorre-as incessantemente e sem motivo aparente. Quando ela lhe pede para parar, diz que está parado e continua. Horas a fio. Mas deixou de parar na janela. Agora, diz a mulher, gosta de as ter sempre fechadas.
Hoje, a filha, o genro e os netos estavam fora para um casamento. Ficou sozinho em casa com a mulher.
No meio da chuva intensa, tocaram a campainha. “Só fui a casa da minha filha, fechar as janelas”, disse. E desapareceu em direcção ao lado contrário da casa.
Calçou umas botas à pressa, vestiu a gabardina e saiu no seu encalço. Correu ruas e ruelas. Chovia imenso e não havia ninguém na rua.
Encontrou-o, finalmente, a descer as escadas que levam ao Coliseu. Estava encharcado. Andava apressado. Perguntou-lhe o que fazia ali. Respondeu que andava à procura da cozinha.
Pegou-lhe no braço devagarinho e ele seguiu-a. Não lhe parece que alguma vez a tenha olhado enquanto subiam as escadas e a Calçada. Apenas subia as escadas.
Vinha num passo apressado. Anda num passo tão apressado, pensou. Deve ter sido por isso que custou tanto encontrá-lo.
Diria, no entanto, que a acompanhava, meigamente. Como se ainda sentisse o calor dos braços dela que o traziam de volta. E lhe soubesse bem o calor. Ou voltar.
Ao chegar á porta de casa, olhou-a finalmente. Havia palavras no olhar dele, mas ela não as entendeu. Falava demasiado baixinho.
Antes de começar a subir as escadas falou, enfim. Disse-lhe que tinha mentido. Mas não queria que a mulher soubesse e ficasse triste. Mentiu em quê, sr. F.? Não sei. Só não quero que ela fique triste. Não lhe diz pois não? Que eu menti…Prometeu que nada diria. Possivelmente não era a cozinha que procurava, pensou.
Fala, anda, vê, ouve. Tem memórias. Baralhadas, mas memórias. Apenas não vive. E não quer que a mulher fique triste. Mesmo que para isso tenha que mentir.
O filho entrava no 2º ano e era a primeira vez que ficava sozinho em casa. Para poder pagar a casa, não havia hipótese de arranjar ninguém para ficar com ele. Começava a trabalhar cedo, às sete da manhã, e as aulas começavam às nove.
No primeiro ano, o refeitório da escola não funcionou. O filho almoçava em casa do Sr.F. com a neta dele. A mulher ainda trabalhava e a filha e o genro também. Logo no segundo ou no terceiro dia que se mudou para aquela casa, ele se ofereceu para olhar pelo “neto” emprestado, durante o almoço. E fê-lo, durante um ano lectivo inteiro.
Depois, os anos passaram. Deixou de ser preciso dar almoço ao seu menino, os dois netos, a verdadeira e o emprestado, separaram-se na escola, e deixaram de se ver tanto.
A doença, as doenças, também ajudaram ao afastamento. Primeiro o coração, depois os rins, depois um atropelamento e o Sr. F. passou a dividir a sua vida entre o Hospital e a sua casa. Quando estava em casa, passava muito tempo na janela. Por detrás dos vidros, a olhar para as árvores do Instituto. Parecia que não a reconhecia mais. A ela parecia-lhe que o olhar dele não falava. mas nunca teve a certeza.
Nos últimos tempos, as doenças, entretanto, diagnosticadas (ela não fazia ideia que era possível ter Parkinson e Alzheimer, ao mesmo tempo, mas parece que é) afastaram o Sr. F. definitivamente da janela. Não que não ande. A mulher diz que faz quilómetros diariamente, duma ponta a outra de todas as assoalhadas.
Percorre-as incessantemente e sem motivo aparente. Quando ela lhe pede para parar, diz que está parado e continua. Horas a fio. Mas deixou de parar na janela. Agora, diz a mulher, gosta de as ter sempre fechadas.
Hoje, a filha, o genro e os netos estavam fora para um casamento. Ficou sozinho em casa com a mulher.
No meio da chuva intensa, tocaram a campainha. “Só fui a casa da minha filha, fechar as janelas”, disse. E desapareceu em direcção ao lado contrário da casa.
Calçou umas botas à pressa, vestiu a gabardina e saiu no seu encalço. Correu ruas e ruelas. Chovia imenso e não havia ninguém na rua.
Encontrou-o, finalmente, a descer as escadas que levam ao Coliseu. Estava encharcado. Andava apressado. Perguntou-lhe o que fazia ali. Respondeu que andava à procura da cozinha.
Pegou-lhe no braço devagarinho e ele seguiu-a. Não lhe parece que alguma vez a tenha olhado enquanto subiam as escadas e a Calçada. Apenas subia as escadas.
Vinha num passo apressado. Anda num passo tão apressado, pensou. Deve ter sido por isso que custou tanto encontrá-lo.
Diria, no entanto, que a acompanhava, meigamente. Como se ainda sentisse o calor dos braços dela que o traziam de volta. E lhe soubesse bem o calor. Ou voltar.
Ao chegar á porta de casa, olhou-a finalmente. Havia palavras no olhar dele, mas ela não as entendeu. Falava demasiado baixinho.
Antes de começar a subir as escadas falou, enfim. Disse-lhe que tinha mentido. Mas não queria que a mulher soubesse e ficasse triste. Mentiu em quê, sr. F.? Não sei. Só não quero que ela fique triste. Não lhe diz pois não? Que eu menti…Prometeu que nada diria. Possivelmente não era a cozinha que procurava, pensou.
Fala, anda, vê, ouve. Tem memórias. Baralhadas, mas memórias. Apenas não vive. E não quer que a mulher fique triste. Mesmo que para isso tenha que mentir.