sábado, 10 de abril de 2010

O meu professor de português


O meu professor de Português nos dois últimos anos do Liceu, deveria ter, na altura, uns cinquenta e cinco ou sessenta anos.Tinha-se formado muito tarde, enquanto trabalhava como marceneiro.
Era uma figura indescritível, com um enorme carisma e misteriosa. Nunca falava dele. Nunca soubemos se era casado, se tinha filhos, onde vivia. Em dois anos, creio que nunca faltou a uma aula. Era calvo, na parte de tràs da cabeça. Fazia-nos lembrar o St. António. Um dia caiu a subir para o estrado. Éramos putos de 15 ou 16 anos e não contivemos uma gargalhada geral. Levantou-se, olhou-nos de frente e disse-nos “Não, está tudo bem. Não me magoei, não se preocupem”. Fez-se um silêncio enorme na sala. Quando, mais tarde, se falava neste episódio, ninguém conseguia evitar um momento de constrangimento.

Eu detestava ir ao quadro. Adorava escrever, mas o quadro era uma tortura. Um dia chamou-me, no fim duma aula e perguntou-me “Isabel de que cor é este quadro?”. Olhei para ele espantada e respondi “Claro que é preto, Stôr”. ”Olha bem, Isabel, não vês que o quadro é branco, tal qual a folha de papel onde, em cada teste, escreves histórias muito bonitas? Começa a ver o quadro branco, vais ver que há-de resultar”. Nunca o quis contrariar, mas, creio, que ele haveria de ter entendido que não resultou.
Pensei nas suas palavras muitas vezes, anos mais tarde, quando necessitei de me levantar para falar em público e teimava em ver o quadro negro como breu.

Voltei a encontrar o meu professor de Português apenas uma vez, alguns anos depois. Já se tinha reformado. Estava sentado a uma mesa, numa pastelaria de Santarém.
Na altura eu vivia lá e passava, sem dúvida, os piores momentos da minha vida. Falámos do Liceu, do meu medo em ir ao quadro e deixou-me sem fala quando me disse que eu tinha feito o melhor texto que algum dia tinha visto sobre os Gaibéus, do Alves Redol, o livro que escolhi como tema livre no último teste. Claro que lhe dei um desconto na apreciação. Ele sempre tinha gostado das minhas composições e eu sempre me tinha deliciado com as suas palavras de incentivo.

Com a voz pausada mas vibrante com que nos tinha posto a gostar de estudar os Lusíadas, perguntou-me porque tinha voltado para Santarém.”Querias tanto sair daqui, na altura”.
Pensei nos sonhos, entretanto desfeitos. No que queria fazer. No que não tinha feito. Na razão porque ali estava de novo.
Os momentos de hesitação, talvez algum brilho inesperado nos olhos, levou-o a levantar-se devagarinho e a dizer baixinho “Tenho que me ir embora, Isabel. Lembra-te que o quadro da sala é da cor que que lhe quiseres dar”.

Nunca nos voltámos a ver. Os tempos maus passaram. Saí de Santarém. Voltei a ver quadros de diferentes cores. Continuo a gostar de escrever. Voltei, até, a reencontrar muitos dos sonhos, que julgava, perdidos. Só não consegui nunca falar com a mesma facilidade com que escrevo. Mas sempre que o tenho que fazer revejo os olhos brilhantes do meu Professor de Português, enquanto nos lia Camões. E sei que sou capaz.

Ainda hoje lhe agradeço por ter sempre insistido que o quadro preto pode ter as cores que eu lhe quiser dar.

Abril, 2005