quinta-feira, 15 de abril de 2010

Porque é Abril...


Não sei como acontece. No cinema sei. Chama-se flash back, não é?
Na vida? Bem na vida, deve ser, à mesma, um flash back, só que sem efeitos especiais.

Tinha seis anos. Não me lembro em que dia saiu da prisão. Lembro-me de quando o vieram buscar. Lembro-me das três batidas na porta. Não, das batidas não me lembro, ouço-as.
Era Inverno. Dormia no quarto pequenino, mesmo ao lado. Tinha três anos e segundo me contam imenso medo dos papões. Do medo dos papões não me lembro, confesso. Do medo dos homens que entraram, molhados, pela porta adentro, também não me lembro. Só ouço o meu pai a dizer que estava tudo bem e que iria voltar em breve. Nunca tinha visto o meu pai chorar. Achei estranho. Tão estranho que chorei também. A minha mãe já tinha visto. Não me parece que tenha achado tão estranho. E talvez não tivesse chorado por causa disso. Mais tarde, sim. Ao longo dos três anos que se seguiram...mas esses não entraram tanto nos meus efeitos de filme desta tarde.
Não me parece que tenhamos comido alguma torta de chocolate durante esse tempo todo. A moeda que vi, um dia, milagrosamente perdida debaixo da pontinha da camilha bordeuax (na altura devia achar que tinha uma camilha vermelha...mas hoje lembro-a bordeaux. Creio que a memória deve ter razão nas cores) deu para comprar pão. Nunca teria dado para fazer uma torta de chocolate.
Um dia, a minha mãe disse-me que o meu pai viria antes de eu entrar para a escola. De certeza que viria. Só tínhamos, mesmo, que esperar mais um pouquinho, dizia, com lágrimas nos olhos. Aí, e apesar do meu efeito de filme desta tarde não parar muito nesse tempo, acho que já chorava com ela. Mas chorava sem perceber porque chorávamos. Então se ele estava quase a vir...a minha mãe tentava explicar. Mas chorava mais. Tive que desistir.

Chegava tarde a minha mãe e as outras mulheres que iam ver os maridos. Só podia ir uma vez de quinze em quinze dias. Ficava cara a viagem. Os meus avós pagavam a viagem e davam-me de comer, enquanto esperava que ela voltasse, à noitinha. Vinha sempre com os olhos vermelhos. Eu já não estranhava.
Um dia não veio com os olhos vermelhos. Eu estranhei. Mas lembrei-me que faltavam poucos dias para começar a escola. Já não estranhei mais.
“Temos que fazer uma torta de chocolate” “Não temos dinheiro, filha” “Tem que ser, mãe” “Só se pedires à avó que faça…a mãe tem…” “Eu peço, mãe”.
Tinha que pôr o avental. A minha avó não me deixava estar na cozinha sem avental. Sujas-te com a farinha, dizia. Posso partir os ovos? E misturar o açúcar?...e rapar a tigela????
Ficou muito bonita a nossa torta. Não pode ser muito grande, disse a avó. Leva muitos ovos e muito açúcar e muito chocolate...Eu sei, avó.

Agora entraste pela porta. E afinal vinhas a chorar outra vez. Então mas agora quando saías e entravas em casa, vinhas a chorar, pai? Que coisa estranha...
Fiz-te um bolo, adivinha qual…uma torta de chocolate…sim pai!!! Ainda estás a chorar pai, mesmo com a torta de chocolate? Não está boa? Fui eu que fiz. A avó Inês só ajudou…Está boa, filha. Muito boa.
Então porque raio, continuavam todos a chorar????

Mãe, achas que já está fria? Já se pode experimentar? Não querido, ainda não.
Mãe, estás com uns olhos estranhos…não, é impressão tua. Só estava a ver um filme...Um filme? Coitada, é da campanha....

Setembro de 2005