Depois da unidade nacional de Fernando Nobre e da solidariedade nacional de Manuel Alegre, o "entendam-se" do Diário Económico...
O Bloco do Regime, um post do Paulo F. Silva.
A quem serve e que políticas defende o "entendimento"?
Não sei como acontece. No cinema sei. Chama-se flash back, não é?
Na vida? Bem na vida, deve ser, à mesma, um flash back, só que sem efeitos especiais.
Tinha seis anos. Não me lembro em que dia saiu da prisão. Lembro-me de quando o vieram buscar. Lembro-me das três batidas na porta. Não, das batidas não me lembro, ouço-as.
Era Inverno. Dormia no quarto pequenino, mesmo ao lado. Tinha três anos e segundo me contam imenso medo dos papões. Do medo dos papões não me lembro, confesso. Do medo dos homens que entraram, molhados, pela porta adentro, também não me lembro. Só ouço o meu pai a dizer que estava tudo bem e que iria voltar em breve. Nunca tinha visto o meu pai chorar. Achei estranho. Tão estranho que chorei também. A minha mãe já tinha visto. Não me parece que tenha achado tão estranho. E talvez não tivesse chorado por causa disso. Mais tarde, sim. Ao longo dos três anos que se seguiram...mas esses não entraram tanto nos meus efeitos de filme desta tarde.
Não me parece que tenhamos comido alguma torta de chocolate durante esse tempo todo. A moeda que vi, um dia, milagrosamente perdida debaixo da pontinha da camilha bordeuax (na altura devia achar que tinha uma camilha vermelha...mas hoje lembro-a bordeaux. Creio que a memória deve ter razão nas cores) deu para comprar pão. Nunca teria dado para fazer uma torta de chocolate.
Um dia, a minha mãe disse-me que o meu pai viria antes de eu entrar para a escola. De certeza que viria. Só tínhamos, mesmo, que esperar mais um pouquinho, dizia, com lágrimas nos olhos. Aí, e apesar do meu efeito de filme desta tarde não parar muito nesse tempo, acho que já chorava com ela. Mas chorava sem perceber porque chorávamos. Então se ele estava quase a vir...a minha mãe tentava explicar. Mas chorava mais. Tive que desistir.
Chegava tarde a minha mãe e as outras mulheres que iam ver os maridos. Só podia ir uma vez de quinze em quinze dias. Ficava cara a viagem. Os meus avós pagavam a viagem e davam-me de comer, enquanto esperava que ela voltasse, à noitinha. Vinha sempre com os olhos vermelhos. Eu já não estranhava.
Um dia não veio com os olhos vermelhos. Eu estranhei. Mas lembrei-me que faltavam poucos dias para começar a escola. Já não estranhei mais.
“Temos que fazer uma torta de chocolate” “Não temos dinheiro, filha” “Tem que ser, mãe” “Só se pedires à avó que faça…a mãe tem…” “Eu peço, mãe”.
Tinha que pôr o avental. A minha avó não me deixava estar na cozinha sem avental. Sujas-te com a farinha, dizia. Posso partir os ovos? E misturar o açúcar?...e rapar a tigela????
Ficou muito bonita a nossa torta. Não pode ser muito grande, disse a avó. Leva muitos ovos e muito açúcar e muito chocolate...Eu sei, avó.
Agora entraste pela porta. E afinal vinhas a chorar outra vez. Então mas agora quando saías e entravas em casa, vinhas a chorar, pai? Que coisa estranha...
Fiz-te um bolo, adivinha qual…uma torta de chocolate…sim pai!!! Ainda estás a chorar pai, mesmo com a torta de chocolate? Não está boa? Fui eu que fiz. A avó Inês só ajudou…Está boa, filha. Muito boa.
Então porque raio, continuavam todos a chorar????
Mãe, achas que já está fria? Já se pode experimentar? Não querido, ainda não.
Mãe, estás com uns olhos estranhos…não, é impressão tua. Só estava a ver um filme...Um filme? Coitada, é da campanha....
Setembro de 2005
O meu professor de Português nos dois últimos anos do Liceu, deveria ter, na altura, uns cinquenta e cinco ou sessenta anos.Tinha-se formado muito tarde, enquanto trabalhava como marceneiro.
Era uma figura indescritível, com um enorme carisma e misteriosa. Nunca falava dele. Nunca soubemos se era casado, se tinha filhos, onde vivia. Em dois anos, creio que nunca faltou a uma aula. Era calvo, na parte de tràs da cabeça. Fazia-nos lembrar o St. António. Um dia caiu a subir para o estrado. Éramos putos de 15 ou 16 anos e não contivemos uma gargalhada geral. Levantou-se, olhou-nos de frente e disse-nos “Não, está tudo bem. Não me magoei, não se preocupem”. Fez-se um silêncio enorme na sala. Quando, mais tarde, se falava neste episódio, ninguém conseguia evitar um momento de constrangimento.
Eu detestava ir ao quadro. Adorava escrever, mas o quadro era uma tortura. Um dia chamou-me, no fim duma aula e perguntou-me “Isabel de que cor é este quadro?”. Olhei para ele espantada e respondi “Claro que é preto, Stôr”. ”Olha bem, Isabel, não vês que o quadro é branco, tal qual a folha de papel onde, em cada teste, escreves histórias muito bonitas? Começa a ver o quadro branco, vais ver que há-de resultar”. Nunca o quis contrariar, mas, creio, que ele haveria de ter entendido que não resultou.
Pensei nas suas palavras muitas vezes, anos mais tarde, quando necessitei de me levantar para falar em público e teimava em ver o quadro negro como breu.
Voltei a encontrar o meu professor de Português apenas uma vez, alguns anos depois. Já se tinha reformado. Estava sentado a uma mesa, numa pastelaria de Santarém.
Na altura eu vivia lá e passava, sem dúvida, os piores momentos da minha vida. Falámos do Liceu, do meu medo em ir ao quadro e deixou-me sem fala quando me disse que eu tinha feito o melhor texto que algum dia tinha visto sobre os Gaibéus, do Alves Redol, o livro que escolhi como tema livre no último teste. Claro que lhe dei um desconto na apreciação. Ele sempre tinha gostado das minhas composições e eu sempre me tinha deliciado com as suas palavras de incentivo.
Com a voz pausada mas vibrante com que nos tinha posto a gostar de estudar os Lusíadas, perguntou-me porque tinha voltado para Santarém.”Querias tanto sair daqui, na altura”.
Pensei nos sonhos, entretanto desfeitos. No que queria fazer. No que não tinha feito. Na razão porque ali estava de novo.
Os momentos de hesitação, talvez algum brilho inesperado nos olhos, levou-o a levantar-se devagarinho e a dizer baixinho “Tenho que me ir embora, Isabel. Lembra-te que o quadro da sala é da cor que que lhe quiseres dar”.
Nunca nos voltámos a ver. Os tempos maus passaram. Saí de Santarém. Voltei a ver quadros de diferentes cores. Continuo a gostar de escrever. Voltei, até, a reencontrar muitos dos sonhos, que julgava, perdidos. Só não consegui nunca falar com a mesma facilidade com que escrevo. Mas sempre que o tenho que fazer revejo os olhos brilhantes do meu Professor de Português, enquanto nos lia Camões. E sei que sou capaz.
Ainda hoje lhe agradeço por ter sempre insistido que o quadro preto pode ter as cores que eu lhe quiser dar.
Abril, 2005